20 de fev. de 2008

"Modernidade e Ambivalência" - Zygmunt Bauman

1.1. A modernidade é marcada pela distinção tensa e tensionante entre ordem (cultura e organização política) e caos (natureza, fluxos, diversidade, variação, etc).

1.2. Ao contrário de outras épocas (em que essa distinção de alguma forma já operava mas não era determinante), na modernidade a ordem a ordem é vivida como tarefa, a tarefa recorrente e infinita de separação e purificação; nela, as atividades de classificar e identificar os entes são consideradas fundamentais para a constituição de um mundo habitável; Bruno Latour, no livro Jamais fomos modernos (1991), nos diz algo semelhante ao tratar dos modernos como empenhados como empenhados em um projeto de purificação; é fácil reconhecer nas considerações desses dois autores - Latour e Bauman- a vontade de clareza e distinção e o horror à irresolução que tornaram Descartes o patrono da Idade Moderna.

1.3. Os procedimentos dissociativos, separadores e segregadores, implicados nas classificações e identificações purificantes, geraram produtos na forma de inúmeras dicotomias: sujeito (atividade) e objeto (inércia e passividade), indivíduo e sociedade, natureza e cultura, corpo (substância extensa) e mente (substância pensante), forças (energia) e sentido (linguagem, símbolos); ou seja, esses procedimentos agem como expedientes de atribuição de sentido e organização do caos mediante a produção dos dualismos.

1.4. No entanto, segundo Bauman, há inevitavelmente, à medida que progride a tarefa moderna de ordenação, uma produção involuntária de ambigüidade; quanto mais avança o afã classificador, mais emergem aspectos refratários à pureza das classificações e das identidades. Latour, na obra já mencionada, também assinala o fracasso dos modernos; sua tese é a de que jamais fomos os modernos que pretendíamos ser: procurando os "puros", produzimos os "híbridos" inclassificáveis; segundo Bauman, a modernidade é assim envolvida em um programa reflexivo infinito: será sempre necessário refazer os passos já dados, mas, de alguma forma, desconstruídos por esses mesmos passos.

1.5. Ocorre, portanto e paradoxalmente, uma descoberta indesejada de contingência como fruto da procura metódica da ordem e da necessidade; como a descoberta é recorrente, o programa reflexivo da modernidade se consolida e aprofunda.
Três observações cabem neste momento:
a) a dinâmica moderna impõe a constituição do sujeito reflexivo; não se trata mais de identificar a subjetividade apenas com a agência e com a atividade, mas de exigir do sujeito a capacidade reflexiva de refazer-se e refazer metódica e conscientemente seus passos ordenadores; é nesse contexto que se pode entender o crescimento de uma linguagem de auto-referência subjetiva capaz de sustentar as "falas de si" que se exigem do sujeito da modernidade; no último século, vale lembrar, a psicanálise foi uma das mais importantes fontes desse vocabulário reflexivo.
b) a tarefa de dar sentido produz não-sentido; o não-sentido não deve ser pensado apenas como a base sobre a qual se exerce a capacidade subjetiva de dar sentido (o caos primordial), nem como um resto, refratário a essa atividade subjetiva (o "real" não simbolizável): ao contrário, o não-sentido é um dos produtos mais sistemática e regularmente associados ao exercício das atividades humanas ordenadoras do cosmos.
c) o fracasso reiterado da tarefa moderna, a convivência inevitável com seus produtos involuntários e indomáveis - o ambíguo, o contingente e as ambivalências - em uma era marcada pela inflação da vontade e do empenho de domínio, clareza e distinção, fazem da Idade Moderna uma época extremamente exposta ao traumático; ou seja, os fracassos inevitáveis da razão e da língua (e de outros procedimentos de ordenação) nos encontros com as ambivalências modernas estão nas raízes do traumático como regime de vida; passa-se, assim, de uma consideração dos "eventos traumáticos" aos "traumas cumulativos" (Khan, 1963) e, mais ainda, aos traumas crônicos e recorrentes que pertencem a um dado projeto de mundo (no sentido heideggeriano do termo) o mundo moderno.

1.6. Para que essa conexão não fique muito obscura, convém recordar que o traumático, ou catastrófico (o campo das efrações e dos fractais), é definido, na psicanálise e fora dela, como o que diz respeito ao que escapa e contraria, destroça e instiga os poderes da ordem (os poderes tout court, pois todo poder é poder de ordenar); nessa medida, como veremos adiante, o pático e o afetivo (as "paixões da alma") definem o traumático por excelência.

1.7. É muito elucidativo considerarmos o não-lugar do afeto no projeto moderno cartesiano; ele será sempre da "ordem" do ambivalente, do ambíguo e do contingente e, portanto, potencialmente traumatógeno; uma leitura de Descartes no seu Tratado das Paixões da Alma, acompanhada e esclarecida pelo excelente trabalho de Lívio Teixeira (1990), Ensaio sobre a Moral de Descartes, conduz às seguintes posições:
a) os afetos são idéias essencialmente (e não apenas acidentalmente) confusas porque são oriundas da união de duas substâncias simples e incompatíveis: o corpo e a mente; no entanto, é a união - desencontrada e traumatizante - de duas substâncias simples o que constitui o homem na sua essência como ser paradoxal, ambíguo, no limite do pensável;
b) os afetos são, assim, idéias que não podem ser apreendidas pelo entendimento e por isso não dão lugar à certeza, deixando-nos, no que diz respeito a nós mesmos, sob o risco das temidas ambivalências e da irresolução; essa é a razão, diga-se de passagem, para que uma linguagem apta a falar dos afetos assuma quase necessariamente uma feição metafórica e resista a todos os esforços de univocidade;
c) há, portanto, no âmago do projeto ordenador da Modernidade, e isso desde sempre, desde Descartes, um escândalo, o escândalo das paixões; se a nítida oposição entre sujeito e objeto correspondia à oposição entre atividade e passividade, nas paixões da alma assiste-se, com grande constrangimento, a uma brutal inversão: o cenário é o do dinamismo dos objetos contracenando com a passividade do sujeito;
d) nessa medida, expandindo um pouco a proposta cartesiana, podemos reconhecer no traumático a figura exemplar da paixão; o trauma é o momento privilegiado da inversão de papéis, o sujeito é repentinamente apassivado pelo impacto de um objeto cujo dinamismo excede em muito a sua capacidade de enfrentamento e domínio (prático ou simbólico); no trauma, a vontade do sujeito é submetida à sua sensibilidade, aos seus afetos; se a linguagem dos afetos padece sempre da equivocidade, para se falar o trauma não há, rigorosamente, linguagem alguma disponível;
e) ao mesmo tempo, contudo, o traumático - o passional - impões ao sujeito moderno uma retomada do projeto classificatório e ordenador, vale dizer, mobiliza nele os mais poderosos expedientes de separação, de dissociação em que de um lado o corpo e de outro lado a mente devem ser fortalecidos e conhecidos em sua máxima pureza: a medicina, a filosofia e a psicologia atenderam prontamente a esse convite e tentaram se colocar a serviço do projeto moderno de saber e de poder; a psicanálise, porém, trilhou, ao menos parcialmente, um outro caminho.

FIGUEIREDO, Luis Claudio. Psicanálise - Elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta, 2003. pp. 12-5.

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